“O Estado delimita a gente por facções e não nos dá chance de existir sem ser sigla”, diz especialista sobre prisão de MC Poze

Mc Poze

A prisão de MC Poze do Rodo, nesta quinta-feira (29), gerou indignação e acendeu o alerta sobre a forma como o Estado e a mídia brasileira lidam com a juventude negra e favelada. Investigado por apologia ao crime e por suposta ligação com o tráfico de drogas, o funkeiro teve seu prontuário prisional exposto à imprensa pela Secretaria de istração Penitenciária do Rio de Janeiro (Seap), que divulgou que Poze teria declarado vínculo com o Comando Vermelho.

A ficha que todo preso no sistema penitenciário do Rio deve preencher inclui o campo “ideologia declarada”, que permite nove opções: “Neutro”, ADA (Amigo dos Amigos), T (Terceiro Comando Puro), CV (Comando Vermelho), Milícia, Federal ou estrangeiro, Servidor ativo, Ex-servidor e LGBTQIA+. Segundo Gizele, esse campo é uma armadilha para quem vem da favela.

O Estado coloca a gente a partir das facções. A gente é delimitado por siglas. MC Poze não teve saída a não ser colocar o local onde nasceu, porque não há alternativa dentro do sistema”, explica a jornalista e comunicadora comunitária Gizele Martins, doutoranda em Comunicação pela UFRJ e moradora da favela da Maré (RJ). A divisão entre facções dentro dos presídios é uma prática consolidada há décadas no Rio de Janeiro, criada para evitar conflitos entre presos. Mas o que deveria ser um mecanismo de segurança se tornou, segundo Gizele, um método de exclusão institucionalizado.

Gizele Martins, jornalista e doutoranda em Comunicação pela UFRJ – Foto: Arquivo pessoal

Nenhum homem branco do asfalto seria tratado como o MC Poze foi tratado ontem”, afirma Gizele Martins. Para ela, o que está acontecendo com Poze é parte de um processo histórico de criminalização dos corpos negros. “A mídia já está condenando ele antes de qualquer processo judicial, apenas por ele ser um homem negro, favelado e por ser uma referência para a juventude negra.”

A divulgação do prontuário de Poze também é questionada pela especialista. “Estão expondo o rosto dele, a profissão dele, a família dele. O prontuário é sigiloso. A SEAP foi lá e divulgou para todas as mídias, que agora o colocam como criminoso, ignorando sua trajetória como músico e sua importância como voz da juventude negra favelada.”

Segundo dados do Infopen 2023 (última edição divulgada pelo Ministério da Justiça), mais de 66% da população carcerária do Brasil é composta por pessoas negras, sendo que a maioria é jovem, entre 18 e 29 anos. No Rio de Janeiro, estima-se que mais de 70% dos presos sejam pretos ou pardos, número que reflete o racismo estrutural e a seletividade penal no país.

Quem nasce na favela e entra no sistema penitenciário precisa se proteger. Precisa dizer onde mora para ser realocado em um local que evite conflitos. Isso não é uma escolha, é uma imposição. O asfalto não entende isso. A classe média nunca quis olhar para essa realidade”, afirma Gizele.

A maneira como a mídia tradicional tratou o caso também é alvo de críticas. “O que mais me choca é que antes mesmo do Judiciário, a mídia comercial e popularesca já julgou e condenou o MC Poze. Mas não fazem isso com cantores sertanejos, nem com outros músicos brancos que têm ligações com grandes empresários e políticos. Com Poze, já colocam a sigla, o rótulo, o crime, antes mesmo do direito à defesa.

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Para Gizele, a espetacularização da criminalização da juventude negra é um padrão da imprensa há mais de um século. “A mídia que há 120 anos criminaliza favelas e corpos negros continua fazendo isso em 2025. Sempre tratou o jovem negro como criminoso, seja vivo ou morto, e segue lucrando com esse espetáculo de dor.”

O caso MC Poze escancara uma realidade negligenciada: no Brasil, o racismo estrutural se soma à geopolítica das facções para cercear direitos básicos de quem nasce nas favelas. “A juventude negra viva é tratada como não pertencente à cidade. E quando morre, é manchete como inimigo. Não se contextualiza que é o Estado que nega à favela o direito à cidade, à cultura, à vida. Poze é mais um capítulo dessa história de exclusão e silenciamento“, explica Gizele.

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